Antigamente o Pocinho era assim e foi certamente neste Pocinho que desembarcaram uns senhores faialenses, que estando veraneando na Areia Larga, foram de barco até ao Monte, no Domingo, dia 21 de Agosto de 1904, para assistir aos festejos em honra a Santo António...
Jornal "O Telegrapho" n.º 3208 de 31-08-1904
CHRONICA LIGIERA
Cousas do Pico
"Nós, amigos e patricios, que estamos passando o verão na Areia Larga, fomos no domingo da festa do Monte, por mar, gosar o grande arraial.
Excusado é dizer que estava uma tarde lindissima, serena sem uma nuvem a toldar o azul christalino dos espaços, sem uma brisa a crespar o estanho faiscante das águas. O Pico estava todo descoberto, attrahente na magestade da sua nudez e o Fayal, em frente, mostrava todo o illusivo explendor da sua cidade, a rir em volta da curva graciosa do seu porto farto de luz e velas.
A bordo conversou-se animadamente, enquanto os remos iam mergulhando no mar, arrancando-lhe uma floreação de espumas que em breve se sumiam como flocos de neve em água quente.
Falou-se de sciencia, da grande molestia das vinhas que se avistavam, Pico acima, sumidas por entre as paredes numa tristeza doentia; da magna salubridade do clima; do vulcanismo nos Açores; de cousas serias e profundas que deixavam os marinheiros pasmados numa attenção bruta de ignorantes.
O Forjaz recostava-se imponente, fechava um olho como que para enchergar melhor a reminiscencia do seu cerebro, estendia a mão fora da lancha num gesto amplo de orador e dizia que aquilo estava lindo.
Effectivamente. A costa proxima tinha ás vezes bocados encantadores. O sol ia a tombar na curva do poente estendendo pelas aguas um lençol diamantino ondulante de brilhos.
E o sr. Lacerda algo enjoadote...
Para alem, sobre a baixa, avistavam-se as nodoas negras de dois ou tres barcos que pescavam socegadamente.
E a proposito falou-se da pesca dos bonitos, para lá da baixa ainda, muito longe.
Vinha anno que todo aquelle mar parecia coalhado de peixe que saltava faminto um sobre o outro, num cardume basto e buliçoso.
De todos os pontos do Pico e do Fayal saiam barcos á pesca dos bonitos, para aquellas paragens. Uns – ou mais sorte, ou mais arte – enchiam-se rapidamente. O peixe juntava-se em borbotão em volta delles a ponto de muitas vezes se apanhar muito bonito em seco, a saltar sobre os outros, tal era a fartura.
E o sr. Rocha a fumar...
Depois ou fosse inveja ou máo fim havia barquinho que depois de cheio deitava ao mar dois ou tres bonitos já pescados, peixes que iam alarmar o cardume pondo-o em debandada. Isto era peor que um tiro de dinamite. Os bonitos sumiam-se e naquele dia nem escamas delles apareciam. Resultaram odios bem fundados, vinganças naturaes de pescadores menos felizes. E começaram de levar os barquinhos bem fornecidos de pedras e cascalho roliço como bolas, espetos, varapaus, cousas do inimigo. Iam preparados.
E logo que viam lançar dalgumas embarcações peixe ao mar, começavam de apedrejar o bote doidamente, corriam sobre elle num berreiro de cafres.
E ali, sobre o mar, isolados, travavam então serios conflictos. Era e é a sua justiça natural. Algumas vezes o barco alvejado deita vela, arma remos e põe-se a caminho do porto. E os outros vão-lhe no encalço, apupando-os e correndo-os á pedrada.
E chamam a isto enxotar a praga.
Tinhamos chegado. Desembarcamos no Pocinho, sobre a rocha, no caes natural dum grande pedregulho.
Eram cinco e tanto.
O Forjaz fez questão sobre a regularidade do seu relogio,... de mais tinha observado a passagem do sol no meridiano... era o mesmo que um chronometro...
A maré estava seca e a costa toda nua d’aguas mostrava ao sol as brancuras calcareas das suas pedras donde caiam cabeleiras rôxas de sargaços, escorrimentos verdes de algas todas lambidas pelo sol poente. O povoamento fechado entre montes estava abandonado e triste.
Caminhamos, costa acima, espalhados, saltando calhaus.
Um burro, animal de grande valia pela estimação, zurrou, e a sua voz eccoou pelos montes silenciosos, numa saudação de asno. Sobre uma parede um cão ladrava cavernosamente, como se estivesse defendendo a entrada num navio abandonado. Sobre o balcão do sr. Laranjo jaziam esquecidos um tratado de vinicultura que uma pequena brisa folheava sonoramente e dois pares d’oculos onde o sol punha scintilações diamantinas. A uma porta dormitava uma grammatica de ortografia sonica escorraçada do lar como livro atheu da banca dum sacerdote.
Era o Pocinho! Que pasmaceira!
Caminhamos pela longa canada que vae até ao Monte. Ahi nada de notavel a não serem os riscos fundos do motocyclo do sr. Laranjo e as marcas visiveis dos butes (botas, botins) dum illustre cavalheiro que andara toda a manhã rua abaixo, rua acima alucinado com incerteza duma lesão adquirida.
Em cima foi o arraial onde uma musica tocou o que ninguem se lembrou de ouvir."
João Singelo
Crédito da Foto: Salão da Irmandade de Santo António do Monte - ano e autor desconhecido.